quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Perdidos em sombras

Hoje, encerramos mais um ano. Contudo, quem é que encerra o tempo? 

Quando crianças, o tempo não faz total sentido para nós. Ontem, hoje e amanhã misturam-se e dançam juntos, como se fossem um. Os dias passam, contudo, todos são; até que nos ensinam a dividi-los e hierarquizá-los em úteis e inúteis, produtivos ou não. Até que nos mostram como é possível mergulhar em nossas próprias sombras¹, dividindo o indivisível. 

O tempo capitalista pode ser retalhado: horas de estudos, tempo de trabalho, períodos de formação. O tempo de vida não, porque este não é feito de segundos ou séculos, mas de memórias que nos permitem ser o "todo de uma vida só"¹, sem que a gente precise morrer um pouco a cada contagem, a cada virada.

"A vida é indivisível", já dizia o poeta², "Mesmo/ A que se julga mais dispersa". E ela "pertence a um eterno diálogo/A mais inconsequente conversa". 

Nessa mania de dividir, perdemos os bocadinhos de prosa que fazem da vida poesia. Perdemos o beijo bem dado, a mão entrelaçada, a partilha; esquecemos de como é abrir a boca para gargalhar e do que é contar... Felicidades e histórias, dinheiro não. Nós esquecemos e, assim, vamos perdendo  para os dias, meses e anos, aquilo que nos torna humanos; nós esquecemos e devagarinho, acompanhando o ponteiro do relógio, mergulhamos e afundamos nas sombras de nós mesmos. 

Mas veja bem, meu caro, "Todos os poemas são um mesmo poema/Todos os porres são o mesmo porre". Por isso, se eu fosse você, "eu nem olhava o relógio, seguia sempre em frente.../ e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas"². Se eu fosse você, começaria a medir a vida "pelo encantamento que a coisa produza"³ e não pelo tempo no qual pode comprimi-la.

Mas veja bem... Veja bem, eu não sou você. Portanto, contento-me em desexplicar: busque-se na vida e emerja de suas próprias sombras.

Feliz vida.    


¹ Referências do livro "A varanda do frangipani" de Mia Couto
² Referências ao poeta Mario Quintana
³ Referências ao poeta Manoel de Barros

sábado, 19 de dezembro de 2015

A mulher e o cinema

Apesar do dia excessivamente quente e do risco que corria de ser chamada de “poser”, por não ter assistido aos filmes anteriores ou lido os livros sobre o universo, fui ver Star Wars no cinema. Confesso que fui mais como companhia de um irmão fã que pela curiosidade de uma leiga, sorte a minha ter aceito o convite: foram cerca de duas horas e meia de filme e diversas reflexões.

Eu sabia o básico sobre a série: personagens principais, seus respectivos lados na força, algumas de suas características e importância no filme. Sabia, também, que o filme teria referências aos anteriores, mas que não seria essencialmente uma continuação. Sabia que novos personagens apareceriam. O básico para não cutucar o fã ao lado. Só não sabia que uma personagem seria marcante ao ponto de me fazer sentar e escrever sobre ela. Ou, na verdade, sobre como ela se parece com tantas outras mulheres.

Rey era órfã e vivia no seu planeta como uma catadora de lixo. Como diz minha mãe, vendia o almoço para pagar a janta. Teve que aprender a se virar sozinha: conseguir a própria comida, defender-se, curar-se e cuidar-se. Aí, talvez, pensando em como os filmes normalmente representam as mulheres, você pergunte: isso tudo sem homem? Não, teve homem sim.  Mas ela não precisava que ele segurasse sua mão ou que a salvasse.

Por que, exatamente, eu gostei da Rey? Ela poderia ser eu ou você: uma mulher comum. Ora, quantas vezes mesmo você teve um homem para segurar sua mão enquanto andava rápido, com medo de um cara que a assediava?  Ou quantas vezes um homem - alto, moreno e charmoso - apareceu no meio da noite, enquanto você andava apressada, para segurar  sua mão e levá-la em segurança até sua casa? Provavelmente nunca. Pois é. A gente encara a vida mais sem os homens que com eles, principalmente, quando encaramos o machismo de muitos; nesses casos, temos apenas umas as outras. E olhe lá.
Repito, Rey foge totalmente do estereótipo cinematográfico feminino, da mocinha em apuros (padrão que, aliás, a Disney ajudou a disseminar e fez esse trabalho muito bem feito). No caso de Rey, ela é só uma garota vivendo a própria vida com coragem e arriscando-a quando necessário.

E, afinal, não é isso que a gente faz o tempo todo?

Rey e sua força fizeram-me pensar: refletir sobre a força que não apenas tiraram de nós, mulheres, nos cinemas, mas na vida. Obrigaram-nos a lutar (porque em um mundo machista, não resta outra coisa  a não ser a luta) e ainda nos chamam de fracas e, por vezes, incapazes. Diminuem nossas batalhas e vitórias. Acham que podem nos submeter ao lugar que quiserem, esquecendo-se que o nosso lugar e papel – tímido ou exuberante, cobrindo-se ou expondo-se, sendo isso ou aquilo – são todos os que quisermos e escolhermos.

Preste atenção, a nossa questão não é dizer que os homens não prestam, de forma generalizante, e que devem ser exterminados.  Porém, dizer que nos viramos sozinhas o tempo todo, então, vocês podem se libertar dessas poses de valentões: não precisamos que nos salvem. Queremos que nos respeitem e entendam que nossas escolhas independem de suas vontades: não precisamos que falem por nós; então, parem de sufocar nossas palavras.

A minha questão, neste texto, é respirar aliviada porque um padrão, ao menos em um filme de grande circulação, foi quebrado. É ficar contente de não passar duas horas sentada, tendo que engolir um tipo de protagonista que não tem nada a ver com que a maior parte das mulheres é (ou todas, se pensarmos que muitas de nós apenas assumem um papel que lhes foi ensinado ou imposto, sem reais escolhas).

Minha questão é comemorar.

CO-ME-MO-RAR mesmo: ufa, um passo a mais. Está valendo a caminhada.

Triste mesmo foi só ouvir comentários (inclusive de mulheres) de como a personagem era “feminazi”.

Respirei fundo: um paradigma por vez.

Vamos lá.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Padrão

Espreme-se.
Tic bate o tac no cabeleireiro. 
A cabeça dói, a orelha queima,
Lacrimeja os olhos já.

Espreme um pouco...
Ma(i)s.
Tudo pra caber
Nele(?)

A lente incomoda.
O sapato aperta
Dedos, coração.
Blusa, sufoca
Ar. Cadê?

Caber.

Preencha o short!
Encha o seio!
Esprema: barriga!
Esforce-te: vá.
Um pouco mais, caberá.

Ele muda
Transforma.
Deforma.
E você sempre tentando...
Caiba nele, JÁ!

Espreme, aperta, alarga...
Cabe(r)(á)(?)

Nunca te disseram.
Ou nunca te deixaram ouvir:
você dele não precisa!

Expanda. Comprima: nunca.
Contramão.
Você precisa: jamais!
Grito ardente. Desesperado: NÃO!
É não.

Definir você
Não permita.
Rasgue. Sangre. Desconstrua. Abra.
Caminhos... Seus.

Voe. 

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Carta ao futuro

Querida Mariane,

Eu não sei como anda sua vida aí no futuro. Não sei para onde os descaminhos da vida levaram suas escolhas, mas eu sei o porquê de você escolher a docência. Por isso, aqui do passado, lugar de onde você tomou sua decisão, faço o favor de lembrá-la... Porque, se um dia estiver tão difícil que acredite não poder suportar, você irá lembrar.

Você estava um pouco perdida, lembra? Ainda criança você disse que seria médica e as pessoas que te amavam começaram a sonhar com você. Claro, ser médica, mesmo que não significasse riqueza, significava status... E imagine só! A estudante de escola pública, que os pais trabalharam desde a juventude para alcançar seus objetivos, tornando-se médica. Seria um sonho. No entanto, com o tempo, você percebeu que não era mais o seu sonho.

Eu fico imaginando se, aí no futuro, você mantém essa característica de nunca querer magoar as pessoas; por esse seu jeito, levou a cabo a idéia de cursar medicina até o último ano do ensino médio, quando finalmente a vida te deu uma daquelas rasteiras: ou você decide ou sempre terá alguém decidindo por você. E você decidiu.

Não sei se ainda lembra com carinho do dia em que teve certeza de que não era o que queria. Aqui do passado, você lembra. Lembra das lágrimas e do frio na barriga; lembra do medo e também da coragem que tomou seu coração depois. Você sempre soube o que queria de verdade, mas inventava umas desculpas pra se convencer, mas tem uma hora que a gente entrega os pontos e se entrega ao que nos garante aquele brilho nos olhos.

Brilho nos olhos: nunca se esqueça de como é ver o mundo através dele.

Você olhava para as crianças com afeto e se perguntava o quanto poderia afetá-las e ser afetada por elas. E descobriu. Lembra-se de quando foi acompanhar a aula do seu irmão e de como aquelas crianças te olhavam com curiosidade? Lembra-se da sensação? Eles estavam curiosos e agitados, então, você disse, calmamente, que se eles continuassem gritando, você não poderia entender o que diziam e, por sua vez, eles não saberiam quem você era. Então, eles se acalmaram e começaram as perguntas: Qual o seu nome? O que você é do tio Lucas? Você também é professora? Vai dar aula para gente? Então, vocês tiveram aquele encontro, sabe? Quando os olhos riem e você sabe que está no lugar certo. Houve outros além daquele.

Foi lecionando que você, pela primeira vez, percebeu que todas as crianças são nossas. Nossa responsabilidade. Nosso dever. Nossa luta.

Lembra-se de quando iniciou seu primeiro estágio, de como você recebia os abraços e os desenhos? Lembra-se das histórias? Lembra-se de conhecer as mais duras realidades e de querer ajudar a mudá-las? Espero que não tenha esquecido do desespero ao ver a infância criminalizada e  de como não desistiu, mesmo diante das mais absurdas e desesperadoras acusações de “defensora de bandido”.

Você acreditava na democracia, na liberdade, na participação, nos direitos resguardados, os quais favoreceriam o cumprimento dos deveres. Você acreditava na solidariedade, no acesso igualitário, na diversidade. Você acreditava num mundo diferente e, sobretudo, melhor. Melhor para quem nunca teve saneamento básico ou acesso às escolas de qualidade; pra quem corre o risco de morrer por ser negro e pobre; para seus prováveis filhos. E para os filhos de todos.

Você sonhava com um mundo em que os olhos de intolerância fossem transformados em olhos de esperança e partilha.

Eu não sei o quanto conseguiu mudar as situações que a incomodavam. Não sei o quanto mudou em interação com o outro e o mundo. Porém, eu sei que você acreditava que iria conseguir.

Às vezes,
“O tempo nos faz esquecer
O que nos trouxe até aqui
Mas eu me lembro muito bem
Como se fosse amanh㔹

E farei o possível, daqui do passado, para que você nunca se esqueça.

Com ternura,


Você



¹ Música "Armas Químicas e Poemas" - Engenheiros do Hawaii

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Hoje é dia das crianças

Hoje é dia das crianças. De todas as crianças. 

A segunda frase deste texto poderia ser um exagero, caso nos lembrássemos de que hoje é dia delas, de que todos os outros dias também deveriam ser, independente de onde moram e de como vivem. Mas nós não nos lembramos. Não nos lembramos porque não é fácil: não é fácil lembrar-nos do quanto falhamos com elas todos os dias; de como ignoramos suas súplicas, suas dores e seus medos.

Ter medo do escuro é coisa de criança: não tenha medo do escuro. Porém, aqui estamos nós, fadando nossas crianças à escuridão da vida, dos castigos, dos conteúdos; à escuridão das ruas, do furto.

Hoje é dia das crianças. De todas as crianças. Caso você não se lembre, eu faço questão de repetir:

Hoje é dia das crianças. De todas as crianças. E nós temos responsabilidades sobre elas, sobre todas elas. Sim, nós: eu e você, como parte da sociedade, temos responsabilidades. Então, antes de gritar por redução da maioridade penal e até desejar a morte de algumas crianças; antes de sujeitá-las e espancá-las; antes de destinar a elas a escuridão e o silenciamento do mundo, lembre-se que é seu dever, como "pessoa de bem" que defende a família e cumpre as leis:

"assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão." (artigo 227 da Constituição)


Anotou o recado? Há muito trabalho pela frente.

Todas as crianças são nossas. Eu assumo a minha responsabilidade.

E você?

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Ser pai

Todo dia é dia dos pais: é um clichê no qual acredito. No entanto, não foi por isso que não postei uma foto com meu pai no último domingo, não foi por isso que não escrevi coisas belas sobre a paternidade. Eu estava pensando em outra coisa.

O meu pai é um típico amigão e palhaço, sempre tivemos uma relação maravilhosa, apesar de nossos inúmeros defeitos. Desde pequena, eu o vejo durante poucas horas do meu dia, mas isso nunca o impediu de estar presente em minha vida, mesmo quando chegou atrasado. O meu pai sempre esteve lá, porém, sinto muito em dizer que isso não o torna um herói. Isso faz dele um pai; isso não o torna uma pessoa excepcional, contudo, alguém que honrou uma escolha: a de ser pai. 

No último dia dos pais era nisto que eu pensava: as obrigações da paternidade. Pensava nisso enquanto lia as inúmeras declarações no Facebook, que eram lindas, afetuosas e me pareceram sinceras; no entanto, havia uma coisa que me incomodava, principalmente quando a homenagem vinha de uma mulher para seu marido: a indicação de que ser um bom pai, um pai presente, carinhoso e amigo é um mérito e não uma obrigação.

Os discursos citados contemplam a visão machista que sobrecarrega a mulher de obrigações, principalmente quando se trata da maternidade. Maternidade que, por vezes, lhe é forçada. Para que mais servem as mulheres a não ser para terem filhos? 

Voltemos às obrigações: a mulher tem obrigação de cuidar de seus filhos, enquanto a ajuda masculina é louvada. A mulher deve educar as crianças, mesmo trabalhando fora, sendo dona de casa e professora particular dos filhos; já o homem deve trabalhar e descansar no tempo livre, caso o ele use seu tempo livre para ‘ajudar’ sua mulher a educar os filhos sua atitude é aclamada: ele é um bom pai.

E se ele não for nada disso? Ele é homem. Os homens são mesmo assim. Você terá sorte se seu marido, namorado (atual ou ex) ajudar com as crianças e isso será maravilhoso: ele é um homem contra a corrente, absolutamente incrível. Será?

Talvez essa reflexão, num dia em que as pessoas estavam apenas preocupadas em homenagear (o que eu acho divertido e prazeroso), seja culpa desta busca por lucidez que dura faz algum tempo, fazendo com que eu leia e ouça os diferentes discursos com atenção, sem nunca aceitá-los prontamente.

Pode ser culpa deste tal feminismo que me fez enxergar as mulheres que escolhem abortar (literalmente e não depois do nascimento), mulheres que não tenho condição de julgar, mas que são julgadas o tempo inteiro, sem pena ou considerações. Talvez seja culpa desta percepção menos distorcida das mães solteiras, as quais ouvem absurdos ao enfrentar a vida com seus filhos nos braços. Os homens saem ilesos. A irresponsabilidade é uma marca masculina e deve ser respeitada.

Talvez seja culpa do olhar mais atento sobre o meu lugar no mundo, ou sobre o lugar que destinaram a mim. Talvez seja culpa da minha reflexão sobre essa sociedade que transformou obrigações em qualidades. Afinal, a honestidade, sinceridade e respeito tornaram-se atributos glorificáveis. Não deveriam ser.

Meu pai, inclusive, diz não saber de onde tirei essas coisas todas, principalmente esse tal de feminismo; às vezes, diz que sou moderninha demais. Mal sabe que em todas as ocasiões em que ele disse “filha, isso não é mais que minha obrigação de pai”, ajudava-me a construir a percepção do meu papel como mulher, profissional, possível mãe; como ser humano, como alguém que deve ter o direito de escolher o que quer e o dever de assumir suas responsabilidades.

Meu pai assumiu a responsabilidade que lhe cabia. Ele quis uma gestação. Não abortou após meu nascimento.

Meu pai não merece palmas por isso. Não merece campanha no Facebook numa corrente “pró-vida”, numa exaltação de sua coragem.  

Meu pai merece minha cumplicidade, lealdade, carinho e amor, porque foi isso que sempre me deu. 

Isso, meus amigos, não se chama exaltação. Chama-se retribuição.




Obs.: Meu pai chama-se Doriethison, ele, como já dito, cumpre seu papel de pai, por isso, pergunta se "é pavê ou pacumê". É um marido e sogro tão afetuoso quanto pai é. A ele agradeço por cada momento em que transcendeu seu papel de pai e foi tudo o mais que precisei.  

terça-feira, 30 de junho de 2015

Aos vinte

Sou Mariane. Sou caucasiana. Tenho olhos verdes. Heterossexual. Cristã.

Tive poucas (quase nenhuma) restrições na infância e na juventude. Tive praticamente todos os brinquedos que quis. Tenho as roupas e sapatos que desejo e preciso.

Nunca passei fome.

Embora minha mãe tenha trabalhado fora antes que eu nascesse, a partir do meu nascimento ela se dedicou à maternidade. Eu nunca cuidei de irmãos mais novos enquanto meus pais trabalhavam. Eu nem sequer precisei cozinhar ou lavar a minha própria louça durante anos.

Meu pai, mesmo cansado, conseguia um tempo para ficar conosco.

Eu sempre tive os abraços de que precisei.

Fui alfabetizada. Ganhei livros. Fui incentivada a lê-los. Eu tinha tempo para fazê-lo.

Eu brinquei de boneca.

Brinquei de polícia e ladrão. Eu nunca precisei roubar.

Embora eu já tenha tido medo de andar sozinha à noite, nunca tive medo de levar uma pedrada por estar com uma Bíblia.

Eu nunca tive medo de morrer espancada por minha sexualidade.

Eu nunca tive medo de ser morta porque minha cor poderia indicar envolvimento com crimes.

Cheguei aos 20 sem experimentar essas sensações.
Sem enfrentar essas limitações.

Aos 20, sou universitária. Futura professora. Dona de um destino que ganhei, bem mais do que lutei para ter.

Aos 20, coloquei-me no lugar de quem não teve a minha sorte.
De quem não conseguiu romper com condicionamentos.
Quem ainda não venceu.
E que não vencerá, se continuarmos a gritar por sangue.
Por ódio.
Por redução...


Da vida. 


"(...) há cada vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça no altar da segurança. Nas ruas das cidades são celebradas as cerimônias. Cada vez que um delinqüente cai, varado de balas, a sociedade sente um alívio na doença que o atormenta. A morte de cada malivente surte efeitos farmacêuticos sobre os bem-viventes. A palavra farmácia vem de phármakos, o nome que os gregos davam às vítimas humanas nos sacrifícios oferecidos aos deuses nos tempos de crise.”
Eduardo Galeano

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Deus é pequeno

Talvez, você tenha pensado em parar de ler estas palavras ainda no título. Contudo, permita-se continuar. Permita-se conhecer o meu Deus.

Deus é pequeno: é nisso que acredito.

Pequeno como mão de criança, a qual aperta nosso dedo pela primeira vez.

Pequeno como a uva que alimenta o faminto.

Pequeno como a folha que cai e colore o outono.

Este é o Deus que conheço.

Mas nem todos o conhecem, porque nos ensinaram a vê-lo gigantescamente longe, e, claro, enorme.

Enorme como a mão que esgana.

Enorme como a uva que faz engasgar.

Enorme como a árvore que observa o cair das folhas sem saudade.

Para Rubem Alves, o divino é:
"uma gota de orvalho, uma amora roxa, uma cambalhota que tiziu, um raio de sol numa teia de aranha, a cor de uma joaninha, um bombom, uma bolinha de gude, um amigo, uma acertada de bilboquê: coisas pequenas, sem preço."
Por isso, o meu Deus é pequeno.

Tão pequeno que vejo todo dia.

Todo dia de tão grande.

Tão grande que eterno.

E do eterno... Amém.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Medo da liberdade

Você já passou da adolescência, já é um adulto e tem grandes pretensões. Você já  trilhou tempestuosos caminhos  e já contemplou a paz de um dia sereno: aprendeu muitas coisas.  Contudo, há algo que, se perguntado, vai responder que sempre soube fazer: sonhar.

Você sempre soube com o que deveria sonhar: uma casa, carro, família, uma profissão. Venderam-lhe esses sonhos antes mesmo de nascer: já havia planos de um filho arquiteto e de uma bela menina, a qual poderia cuidar de uma grande família e ser bem sucedida. Menino ou menina será, sobretudo, uma pessoa  “do bem” – o que não significa ser solidária ou respeitar o direito de qualquer ser humano, apenas não furtar, talvez sonegar alguns impostos ou não devolver o troco que veio errado; ou não assassinar, já que o sangue de inocentes nunca está em suas mãos frágeis; tudo é sempre uma fatalidade. E, por ser uma pessoa "do bem", será livre.

Liberdade: o sonho que mais lhe venderam. Nunca, no entanto, ousaram lhe dizer o que era.  Até disseram, aliás, que ser livre é sonhar esses sonhos tão comuns, típicos de propaganda de margarina. Ser livre é “não dever nada a ninguém” (porque nada, nunca, é sua culpa).

Você foi e é, assim, tudo que você pode ser, tendo exatamente os sonhos que pode ter¹.

Você até se diria “livre” naquela conversa de bar, entre amigos. Entretanto, quando ousam perguntar o que é liberdade, aquele nó na garganta, maldito nó na garganta: você tem medo dela.

É fácil sonhar com uma profissão, embora tenhamos um sistema de ingresso injusto à universidade e as oportunidades estejam proporcionalmente ligadas a condição social,  a fórmula é certa: estudar, fazer aquela prova milhões de vezes, não desistir, ter sorte. Assim, você deixa de ir a algumas festas (ou não), dorme um pouco menos e ao fim de alguns anos tem um diploma.

É fácil sonhar em ter uma família, embora haja brigas e incompatibilidades, você não vai encontrar resistência para que se case, tenha filhos, dê algumas palmadas² quando necessário e fique casado para sempre - mesmo que traia sua esposa ou esposo esporadicamente, pois isso é totalmente aceitável.

Você vai juntar aquele dinheirinho todo mês, vai ir menos ao shopping,  nem sempre terá a roupa da moda, porém, vai comprar uma casa e um carro. Ufa. Você é livre.

É mesmo?

Por que você acha que lhe venderam estes sonhos? Porque você acha que nunca, na sua infância, no lugar de “o que vai ser quando crescer?”, perguntaram “quem pretende ser quando crescer?”. Por que nunca se preocuparam em te vender sonhos de um mundo sem desigualdades, onde há distribuição de comida para todos (porque há comida para todos, não se engane)? Por que nunca venderam o sonho  de viajar para lugares pobres e oferecer ajuda?  Por que estender a mão sempre foi um gesto de pedir e não de compadecer-se? Por que não o sonho de passar o dia cantando e desejar que garis e motoristas tenham um bom dia? Por que não o sonho de querer bem? 

Por que não lhe doaram o sonho de mudar o mundo?

Porque o mundo precisa ser exatamente como é: o mundo desigual, em que os sonhos individuais são a única coisa que temos, é necessário para a fortuna de poucos. O mundo  que tortura e mata quem sonha diferente é preciso: os sonhos egoístas não podem se perder e dar lugar aos sonhos coletivos de justiça – não  de vingança. Você precisa ser governado apenas pelos sonhos que fabricaram, porque se perdê-los...

Há o caminho.

E o caminho não lhe basta. Você precisa de comando: de um destino. Foi o que sempre ensinaram a você.

As nuvens não são mais de algodão¹, meu caro. Mas podem ser.

Liberdade é pouco. Procure por aquilo que ainda não deram nome³.



¹ Quase todo texto aqui publicado começa ao som de uma linda canção, neste texto não foi diferente. Faço referência, duas vezes (por isso a repetição do ¹), à música "Somos quem podemos ser" dos Engenheiros do Hawaii. 


² A palmada ainda é um recurso muito utilizado para "educar". Que tal repensar essa prática? As páginas do Facebook "Crescer sem Violência" e "Cientista que Virou Mãe"podem ajudar.

³ Em referência a Clarice Lispector: "Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome'.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir

Esse título enorme é, também, o nome do livro de Rubem Alves sobre a Escola Ponte: a escola em que a infância nunca para de brincar. Mas escola e brincadeira combinam? Pensando de maneira geral nas escolas brasileiras, a resposta é não.

O nosso sistema educacional, apesar da LDB (lei de diretrizes e bases da educação nacional) garantir uma educação para cidadania, estacionou em projetos conteudistas, visando uma assumida linha de produção: entram crianças, saem suportes de saberes inúteis. A escola, como diz Rubem Alves, não responde às questões das crianças: brincar é uma dessas questões.

Brincar é se descobrir dentro do mundo, reproduzi-lo, mas também criá-lo. Brincar é conviver e é só convivendo que aprendemos, desde cedo, a arte da diplomacia. Deixar brincar, dentro e fora da escola, é tornar possível um desenvolvimento pleno da infância, uma etapa viva nela mesma e não por projetos futurísticos. Sobre isso, Pedro Barbas declara:

“As crianças não tem presente. Têm apenas futuro. Na escola, toda gente se preocupa com os anos que virão a seguir. Os alunos estão sempre sendo preparados para o futuro. E no futuro sempre acaba havendo queixas sobre o que foi o passado. (...) Perante a impossibilidade de preparar para o futuro, por que não damos uma chance às crianças de viverem apenas e somente o presente?”

O presente da criança é a sua infância. 

A escola com que sempre sonhei é aquela em que a infância sorri para cada criança, como na Ponte, em que se pode brincar ou escutar música: aprender. Aprender pela experiência, a qual não é delimitada pelo currículo. Aprender pela curiosidade, a qual não se detém ao pontilhado de letras e números. Uma escola em que professores sabem que não sabem tudo e, por isso, também aprendem¹.

Na escola que sempre sonhei tudo pode ser sonhado: não apenas uma profissão. Tudo pode ser vivido e compartilhado. A cidadania não reside no futuro, move o presente. A escola com que sonho está nos parques, nas ruas, nas estrelas, nos recreios, na chuva, nos quintais, nas janelas e portas de abrir, nunca portas e janelas de fechar².

A escola com que sempre sonhei e que existe, embora ainda distante, é o próprio  universo e não uma miniatura dele.

A escola que sempre sonhei é aquela que responde às perguntas das crianças. Por isso, ela só pode nascer dos desejos dos pequenos. Aí você indaga: qual é, afinal, o desejo das crianças?

Eu respondo: a vida. Contudo, nossas escolas esqueceram de preencher seus currículos com vida.

Desejando viver, as crianças brincam. Por isso, deixem que as crianças vivam brincando na escola ou fora dela. Não lhes roubem a infância. Desta maneira, eu terei a escola com que sempre sonhei existindo em cada olhar infantil de curiosidade; ainda que não exista, infelizmente, em cada um de nós.

¹ Baseado em Paulo Freire, o qual declara: ninguém sabe tudo, ninguém tudo ignora.

² Em referência à Fábula de um arquiteto de João Cabral de Melo Neto, aqui já citada e

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Portas e o Universo...

O que as portas de João Cabral e o universo de Rousseau têm em comum? A liberdade.

Rousseau, nos devaneios de suas caminhadas solitárias¹ declara:

(...) amo demais a mim mesmo para poder odiar quem quer que seja. Isso seria estreitar, comprimir minha existência, e eu gostaria antes de estendê-la sobre todo o universo.

João Cabral, na fábula de seu arquiteto², declama:

O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
Portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

Escolher comprimir-se pelo ódio é como construir portas de fechar, que, embora possam abrir, sempre estão fechadas.

Escolher amar e querer bem é construir portas em portas, nunca deixar-se comprimir.

Escolher o ódio é fugir de si, encolher-se: esconder-se.

Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto

Escolher o amor é entrar em si mesmo.  Achar-se e perder-se... Sempre estender-se.

(...) aprendi, assim, por minha própria experiência, que  a  fonte da verdadeira felicidade está em nós e que não depende dos homens tornar miserável aquele que sabe querer ser feliz.


Mergulhe-se e liberte-se.



¹ Os devaneios do caminhante solitário de Jean-Jacques Rousseau
² Fábula de um arquiteto de João Cabral de Melo Neto

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Medo ou esperança? Os dois!

Quando eu era criança, tinha medo do escuro. Não enxergar me apavorava. Eu cresci e continuo a nutrir o mesmo medo. Todavia, o escuro que hoje me apavora é o do coração dos seres humanos. O que estremece meu corpo e alma é a sua falta de visão.

Eu tenho medo do caminho que, como sociedade, estamos trilhando: naturalizamos o preconceito em nossa fala e em nossas atitudes; ignoramos a dor histórica de diferentes grupos; menosprezamos a luta de outros; elegemos a intolerância; saudamos a má fé; enxergamos nossas crianças como futuro e, por puro descuido, perdemos seu presente; sonhamos com a paz individual e compactuamos com a guerra, caso essa seja necessária para afastar de nós a miséria alheia.

Eu tenho medo. Contudo, tenho esperança.

Eu tenha esperança porque brinquei de boneca com alguém que, ainda hoje, sonha em construir um mundo melhor¹. Eu tenho esperança, porque conversei com alguém que disse: eu chorei quando uma candidatura ameaçou o direito das crianças pobres. Eu tenho esperança, porque vejo o brilho nos olhos de pessoas que lutam por uma educação pública e de qualidade. Eu tenho esperança, porque um desconhecido pagou o medicamento caríssimo de uma criança com câncer².  Eu tenho esperança, porque há pessoas que buscam uma plena democracia e, por isso, levantam bandeiras de respeito, cidadania e inclusão.

Eu tenho esperança, porque tenho medo.

O medo me deixa alerta.

A esperança faz-me lutar.

Assim, cá estou eu, tentando, todos os dias, espantar os que me rodeiam. Para espantá-los, posiciono-me em relação à política partidária e entrego-me as causas sociais; insisto em discutir sobre o direito à humanização em todas as esferas da sociedade e estudo para não reproduzir uma educação bancária³, que apenas ensina a submissão; questiono os movimentos religiosos que prosperam sobre a miséria de muitos; vivo o amor como uma ação, a qual, como define Elisabeth Elliot, nunca constrange, apenas atrai.
Um dia ditaram os sonhos que eu poderia ter, porque sabiam que eu tinha medo.
Esqueceram, no entanto, que o mesmo nó que à vida dilacera, é o que regenera a minha esperança4.

Mantenho a fé.

¹ Ela fala de suas esperanças lá seu pomar: http://saboresdepomar.blogspot.com.br/;
² Pessoas incríveis têm se mobilizado e cooperado com o tratamento de crianças com leucemia, você pode saber muito mais nas páginas do Facebook da Fundação Pró-Hemorio e Amigos do Hemorio;
³ Termo que o educador e filósofo, Paulo Freire, usa para definir uma educação conteudista, que de nada serve para a vida do educando.

4 Em referência à música “Impasse”  do grupo 5 a seco

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O que é ser cristão?

Puxe a cadeira, sente-se: vamos conversar.

Você é cristão? Então, estas palavras são para você. Nada de escolher os escudos antes desta conversa. Nada de fincar os pés ao chão e dizer: daqui não saio. É o chão que te segura? “Deixe o chão desmoronar”¹. Está confortável demais? Espante-se.

Que tipo de cristão você é? Provavelmente, você pensará: mas há mais de um tipo? Sim e há duas maneiras de pensar nisto. Há diferentes tipos de cristãos, porque todos nós somos diferentes. Embora possamos ser da mesma espécie e até mesmo compartilhar o mesmo meio social, ainda assim, há detalhes que nos distinguem, os quais não nos permitiriam servir da mesma forma. Porém, há outro lado. O lado das distorções, das enganações e atrofiamento intelectual, bem como da intolerância e do preconceito.

De qual lado você está?

Você pode ser cristão e gostar de trabalhar com crianças ou idosos; você pode ser cristão e gostar da natureza, de animais. Você pode gostar de administrar, gerir, negociar, investir.  E, em todos esses casos, você pode fazer o que Jesus fez ao vir ao mundo: servir sem orgulho, mas com humildade e amor. Jesus serviu a causa dos que foram abandonados pelos religiosos da época.

E você? Tem servido as quais causas? As suas próprias?

Há algum tempo, encontrei o excelente texto do pastor e vereador Henrique Vieira, no qual declara: 
A experiência da minha fé em Jesus me leva a ansiar por justiça, igualdade, liberdade e ter zelo pela humanidade e pela natureza. A partir da pulsão da minha fé, busco entender o meu mundo e compreendo que o capitalismo é um sistema econômico e cultural que se nutre da exploração, da opressão, da violência sistêmica e da relação predatória com os recursos naturais.²
Poderemos nos dizer cristãos, mas ignorar as mazelas deste mundo, compactuando com intolerâncias diversas, se Jesus recebeu uma cruz, no lugar de trono, exatamente por amparar com amor os que foram rejeitados pela sociedade?

Posso me considerar cristã, caso não defenda o direito das mulheres? Caso sugira que o estupro é por merecimento (ou eleja quem diga)? Posso me considerar cristã se nego a violência, cruzando os braços, e, meramente agradecendo por minha família chegar bem em casa? Posso me considerar cristã se acredito na fome como simples fatalidade de um sistema injusto? Posso me considerar cristã e escolher quem deve ter seus direitos assegurados, segundo meus preconceitos? Posso me considerar cristã se acho normal espancar meus filhos? Posso me considerar cristã se excluo e mato almas com palavras que ferem e humilham?

“É assim, não há como mudar”. Sim. Há o que fazer.

Paulo Freire, educador e filósofo brasileiro, insiste que “onde há vida, há inacabamento”. Por isso, se você está vivo, pode até estar “condicionado, mas não determinado”³.

Onde está, todavia, a resposta?

Em Jesus.

Porém, cuidado. Pode não ser o mesmo Jesus a quem se referem os grandes pastores. E, provavelmente, não será a sua vida um mar de prosperidade como esses pregam.

Mas isso importa? Afinal, “não importa o quanto você ganha; e sim o que você faz com o que recebe” 4.

Você recebeu o perdão e a misericórdia.

O que fará com eles?



¹ Alento - Marcelo Jeneci

² Texto completo pode ser encontrado no link: https://henriquevieirapsol.wordpress.com/2014/09/09/voce-e-cristao-e-pastor-e-e-do-psol-sim/

³ FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 47ª ed. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013

4 Frase de Mary Hunt