Sou Mariane. Sou caucasiana. Tenho olhos verdes. Heterossexual.
Cristã.
Tive poucas (quase
nenhuma) restrições na infância e na juventude. Tive praticamente todos os
brinquedos que quis. Tenho as roupas e sapatos que desejo e preciso.
Nunca passei fome.
Embora minha mãe tenha trabalhado fora antes que eu nascesse,
a partir do meu nascimento ela se dedicou à maternidade. Eu nunca cuidei de irmãos mais novos enquanto meus pais
trabalhavam. Eu nem sequer precisei cozinhar ou lavar a minha própria louça
durante anos.
Meu pai, mesmo cansado, conseguia um tempo para ficar
conosco.
Eu sempre tive os abraços de que precisei.
Fui alfabetizada. Ganhei livros. Fui incentivada a
lê-los. Eu tinha tempo para fazê-lo.
Eu brinquei de boneca.
Brinquei de polícia e ladrão. Eu nunca precisei roubar.
Embora eu já tenha tido medo de andar sozinha à noite, nunca
tive medo de levar uma pedrada por estar com uma Bíblia.
Eu nunca tive medo de morrer espancada por minha
sexualidade.
Eu nunca tive medo de ser morta porque minha cor poderia indicar envolvimento com crimes.
Cheguei aos 20 sem experimentar essas sensações.
Sem enfrentar essas limitações.
Aos 20, sou universitária. Futura professora. Dona de um
destino que ganhei, bem mais do que lutei para ter.
Aos 20, coloquei-me no lugar de quem não teve a minha sorte.
De quem não conseguiu romper com condicionamentos.
Quem ainda não venceu.
E que não vencerá, se continuarmos a gritar por sangue.
Por ódio.
Por redução...
Da vida.
"(...) há cada vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça no altar da segurança. Nas ruas das cidades são celebradas as cerimônias. Cada vez que um delinqüente cai, varado de balas, a sociedade sente um alívio na doença que o atormenta. A morte de cada malivente surte efeitos farmacêuticos sobre os bem-viventes. A palavra farmácia vem de phármakos, o nome que os gregos davam às vítimas humanas nos sacrifícios oferecidos aos deuses nos tempos de crise.”
Eduardo Galeano
Eduardo Galeano
Nenhum comentário:
Postar um comentário