quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir

Esse título enorme é, também, o nome do livro de Rubem Alves sobre a Escola Ponte: a escola em que a infância nunca para de brincar. Mas escola e brincadeira combinam? Pensando de maneira geral nas escolas brasileiras, a resposta é não.

O nosso sistema educacional, apesar da LDB (lei de diretrizes e bases da educação nacional) garantir uma educação para cidadania, estacionou em projetos conteudistas, visando uma assumida linha de produção: entram crianças, saem suportes de saberes inúteis. A escola, como diz Rubem Alves, não responde às questões das crianças: brincar é uma dessas questões.

Brincar é se descobrir dentro do mundo, reproduzi-lo, mas também criá-lo. Brincar é conviver e é só convivendo que aprendemos, desde cedo, a arte da diplomacia. Deixar brincar, dentro e fora da escola, é tornar possível um desenvolvimento pleno da infância, uma etapa viva nela mesma e não por projetos futurísticos. Sobre isso, Pedro Barbas declara:

“As crianças não tem presente. Têm apenas futuro. Na escola, toda gente se preocupa com os anos que virão a seguir. Os alunos estão sempre sendo preparados para o futuro. E no futuro sempre acaba havendo queixas sobre o que foi o passado. (...) Perante a impossibilidade de preparar para o futuro, por que não damos uma chance às crianças de viverem apenas e somente o presente?”

O presente da criança é a sua infância. 

A escola com que sempre sonhei é aquela em que a infância sorri para cada criança, como na Ponte, em que se pode brincar ou escutar música: aprender. Aprender pela experiência, a qual não é delimitada pelo currículo. Aprender pela curiosidade, a qual não se detém ao pontilhado de letras e números. Uma escola em que professores sabem que não sabem tudo e, por isso, também aprendem¹.

Na escola que sempre sonhei tudo pode ser sonhado: não apenas uma profissão. Tudo pode ser vivido e compartilhado. A cidadania não reside no futuro, move o presente. A escola com que sonho está nos parques, nas ruas, nas estrelas, nos recreios, na chuva, nos quintais, nas janelas e portas de abrir, nunca portas e janelas de fechar².

A escola com que sempre sonhei e que existe, embora ainda distante, é o próprio  universo e não uma miniatura dele.

A escola que sempre sonhei é aquela que responde às perguntas das crianças. Por isso, ela só pode nascer dos desejos dos pequenos. Aí você indaga: qual é, afinal, o desejo das crianças?

Eu respondo: a vida. Contudo, nossas escolas esqueceram de preencher seus currículos com vida.

Desejando viver, as crianças brincam. Por isso, deixem que as crianças vivam brincando na escola ou fora dela. Não lhes roubem a infância. Desta maneira, eu terei a escola com que sempre sonhei existindo em cada olhar infantil de curiosidade; ainda que não exista, infelizmente, em cada um de nós.

¹ Baseado em Paulo Freire, o qual declara: ninguém sabe tudo, ninguém tudo ignora.

² Em referência à Fábula de um arquiteto de João Cabral de Melo Neto, aqui já citada e

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Portas e o Universo...

O que as portas de João Cabral e o universo de Rousseau têm em comum? A liberdade.

Rousseau, nos devaneios de suas caminhadas solitárias¹ declara:

(...) amo demais a mim mesmo para poder odiar quem quer que seja. Isso seria estreitar, comprimir minha existência, e eu gostaria antes de estendê-la sobre todo o universo.

João Cabral, na fábula de seu arquiteto², declama:

O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
Portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

Escolher comprimir-se pelo ódio é como construir portas de fechar, que, embora possam abrir, sempre estão fechadas.

Escolher amar e querer bem é construir portas em portas, nunca deixar-se comprimir.

Escolher o ódio é fugir de si, encolher-se: esconder-se.

Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto

Escolher o amor é entrar em si mesmo.  Achar-se e perder-se... Sempre estender-se.

(...) aprendi, assim, por minha própria experiência, que  a  fonte da verdadeira felicidade está em nós e que não depende dos homens tornar miserável aquele que sabe querer ser feliz.


Mergulhe-se e liberte-se.



¹ Os devaneios do caminhante solitário de Jean-Jacques Rousseau
² Fábula de um arquiteto de João Cabral de Melo Neto

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Medo ou esperança? Os dois!

Quando eu era criança, tinha medo do escuro. Não enxergar me apavorava. Eu cresci e continuo a nutrir o mesmo medo. Todavia, o escuro que hoje me apavora é o do coração dos seres humanos. O que estremece meu corpo e alma é a sua falta de visão.

Eu tenho medo do caminho que, como sociedade, estamos trilhando: naturalizamos o preconceito em nossa fala e em nossas atitudes; ignoramos a dor histórica de diferentes grupos; menosprezamos a luta de outros; elegemos a intolerância; saudamos a má fé; enxergamos nossas crianças como futuro e, por puro descuido, perdemos seu presente; sonhamos com a paz individual e compactuamos com a guerra, caso essa seja necessária para afastar de nós a miséria alheia.

Eu tenho medo. Contudo, tenho esperança.

Eu tenha esperança porque brinquei de boneca com alguém que, ainda hoje, sonha em construir um mundo melhor¹. Eu tenho esperança, porque conversei com alguém que disse: eu chorei quando uma candidatura ameaçou o direito das crianças pobres. Eu tenho esperança, porque vejo o brilho nos olhos de pessoas que lutam por uma educação pública e de qualidade. Eu tenho esperança, porque um desconhecido pagou o medicamento caríssimo de uma criança com câncer².  Eu tenho esperança, porque há pessoas que buscam uma plena democracia e, por isso, levantam bandeiras de respeito, cidadania e inclusão.

Eu tenho esperança, porque tenho medo.

O medo me deixa alerta.

A esperança faz-me lutar.

Assim, cá estou eu, tentando, todos os dias, espantar os que me rodeiam. Para espantá-los, posiciono-me em relação à política partidária e entrego-me as causas sociais; insisto em discutir sobre o direito à humanização em todas as esferas da sociedade e estudo para não reproduzir uma educação bancária³, que apenas ensina a submissão; questiono os movimentos religiosos que prosperam sobre a miséria de muitos; vivo o amor como uma ação, a qual, como define Elisabeth Elliot, nunca constrange, apenas atrai.
Um dia ditaram os sonhos que eu poderia ter, porque sabiam que eu tinha medo.
Esqueceram, no entanto, que o mesmo nó que à vida dilacera, é o que regenera a minha esperança4.

Mantenho a fé.

¹ Ela fala de suas esperanças lá seu pomar: http://saboresdepomar.blogspot.com.br/;
² Pessoas incríveis têm se mobilizado e cooperado com o tratamento de crianças com leucemia, você pode saber muito mais nas páginas do Facebook da Fundação Pró-Hemorio e Amigos do Hemorio;
³ Termo que o educador e filósofo, Paulo Freire, usa para definir uma educação conteudista, que de nada serve para a vida do educando.

4 Em referência à música “Impasse”  do grupo 5 a seco

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O que é ser cristão?

Puxe a cadeira, sente-se: vamos conversar.

Você é cristão? Então, estas palavras são para você. Nada de escolher os escudos antes desta conversa. Nada de fincar os pés ao chão e dizer: daqui não saio. É o chão que te segura? “Deixe o chão desmoronar”¹. Está confortável demais? Espante-se.

Que tipo de cristão você é? Provavelmente, você pensará: mas há mais de um tipo? Sim e há duas maneiras de pensar nisto. Há diferentes tipos de cristãos, porque todos nós somos diferentes. Embora possamos ser da mesma espécie e até mesmo compartilhar o mesmo meio social, ainda assim, há detalhes que nos distinguem, os quais não nos permitiriam servir da mesma forma. Porém, há outro lado. O lado das distorções, das enganações e atrofiamento intelectual, bem como da intolerância e do preconceito.

De qual lado você está?

Você pode ser cristão e gostar de trabalhar com crianças ou idosos; você pode ser cristão e gostar da natureza, de animais. Você pode gostar de administrar, gerir, negociar, investir.  E, em todos esses casos, você pode fazer o que Jesus fez ao vir ao mundo: servir sem orgulho, mas com humildade e amor. Jesus serviu a causa dos que foram abandonados pelos religiosos da época.

E você? Tem servido as quais causas? As suas próprias?

Há algum tempo, encontrei o excelente texto do pastor e vereador Henrique Vieira, no qual declara: 
A experiência da minha fé em Jesus me leva a ansiar por justiça, igualdade, liberdade e ter zelo pela humanidade e pela natureza. A partir da pulsão da minha fé, busco entender o meu mundo e compreendo que o capitalismo é um sistema econômico e cultural que se nutre da exploração, da opressão, da violência sistêmica e da relação predatória com os recursos naturais.²
Poderemos nos dizer cristãos, mas ignorar as mazelas deste mundo, compactuando com intolerâncias diversas, se Jesus recebeu uma cruz, no lugar de trono, exatamente por amparar com amor os que foram rejeitados pela sociedade?

Posso me considerar cristã, caso não defenda o direito das mulheres? Caso sugira que o estupro é por merecimento (ou eleja quem diga)? Posso me considerar cristã se nego a violência, cruzando os braços, e, meramente agradecendo por minha família chegar bem em casa? Posso me considerar cristã se acredito na fome como simples fatalidade de um sistema injusto? Posso me considerar cristã e escolher quem deve ter seus direitos assegurados, segundo meus preconceitos? Posso me considerar cristã se acho normal espancar meus filhos? Posso me considerar cristã se excluo e mato almas com palavras que ferem e humilham?

“É assim, não há como mudar”. Sim. Há o que fazer.

Paulo Freire, educador e filósofo brasileiro, insiste que “onde há vida, há inacabamento”. Por isso, se você está vivo, pode até estar “condicionado, mas não determinado”³.

Onde está, todavia, a resposta?

Em Jesus.

Porém, cuidado. Pode não ser o mesmo Jesus a quem se referem os grandes pastores. E, provavelmente, não será a sua vida um mar de prosperidade como esses pregam.

Mas isso importa? Afinal, “não importa o quanto você ganha; e sim o que você faz com o que recebe” 4.

Você recebeu o perdão e a misericórdia.

O que fará com eles?



¹ Alento - Marcelo Jeneci

² Texto completo pode ser encontrado no link: https://henriquevieirapsol.wordpress.com/2014/09/09/voce-e-cristao-e-pastor-e-e-do-psol-sim/

³ FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. 47ª ed. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013

4 Frase de Mary Hunt