Foi numa quinta-feira acinzentada
de maio, por volta das 8 horas, que eu a vi entrar no ônibus. Era alta e
imponente, contudo, parecia tímida diante daquele ônibus cheio de olhos. Eu,
com meus fones no ouvido, não ouvi sua
voz. Caso não carregasse aquela caixa, não saberia, ou se quer imaginaria, que
ela estava vendendo alguma coisa.
Demorei alguns segundos para
perceber que ela realmente anunciava algo; mesmo tímida, mesmo sem tentar persuadir
ninguém... Ela estava vendendo doces, mesmo que de uma maneira tão diferente
dos homens que vejo, costumeiramente, entrar nos ônibus para vender produtos
diversos. Era como se aquele espaço a esmagasse e, hoje, pensando em seu rosto,
não consigo ver nenhuma esperança.
Demorei mais que alguns segundos
para decidir o que fazer. Aquela mulher, com sua voz baixa e seu cabelo ainda
molhado, confrontava meu feminismo com sua bala. Será que devo comprar? Mas eu
nem como bala. Mas eu poderia usar esse dinheiro, mesmo que seja pouco, em algo
útil. Será que devo comprar? Se eu
comprar, talvez, ela fique um pacote de bala a menos de ver uma filha ou
qualquer pessoa que ame. Se eu comprar, talvez ela tenha um tempo a mais para
descansar, fazer algo que queira e goste. Ou talvez ela vá até algum lugar e
compre mais bala... Ou talvez...
Fazia-me perguntas,
confrontava-me. Confrontava a minha luta. Será que ela teve a oportunidade de
um dia ir à universidade? Ela já trabalhou com outras coisas? Essa foi sua última
opção? Por que é tão difícil decidir comprar ou não uma bala? Por que cada uma
dessas mulheres, sentadas no ônibus, não compra uma bala? Será que esquecemos
nossa empatia? Será que elas enxergam a mulher com os doces? Será que mais
alguém está perdido neste ônibus, procurando pelas mesmas respostas?
E ela lá, ancorada em seu silêncio que tudo via,
talvez esperando que alguém descesse, para que fosse junto, sem coragem de
espantar a paz com o barulho do sinal. E lá ela, ancorada em sua espera, talvez
acreditando que alguém ainda fosse comprar algo.
Fiz, finalmente, um gesto,
chamando-a, e ela se aproximou.
- Bom dia, quanto é a bala?
-R$1,00.
-Quero uma, por favor.
- Qual o sabor?
- Hamm...
- Tem maracujá, morango...
- Morango.
- Aqui, obrigada.
- Eu que agradeço.
Ela vendeu mais uma ou duas
balas. E, tão silenciosamente como entrou, deu o sinal e saiu do ônibus. Nada
do típico "valeu motorista" ou “abre aí bom”. Apenas o silêncio.
A bala ficou intacta por um bom
tempo... Ela tinha o gosto amargo do meu feminismo que ainda não chegou, de
forma prática, a tantas mulheres. Aquela mulher no ônibus, vendendo balas,
poderia já ter frequentado a universidade ou nela estar; ela poderia ser feminista e
defender causas tão parecidas com as minhas. Aquele lugar de trabalho não
determina sua inteligência ou coragem; ao contrário, joga na minha cara o quão "fácil" é ser considerada intelectual dentro da academia, ou revolucionária
dentro de casa, mesmo que isso também seja importante. É preciso mais. E
foi a presença dela, naquele ônibus, que me fez perguntar o que eu, como mulher e feminista, ainda
não fiz em apoio a essa e tantas outras mulheres, conhecidas ou desconhecidas. O
que me atrapalha de ser degrau, ombro, pernas e coração de outras?
O meu feminismo, naquela quinta,
veio embrulhado numa bala de morango. Ele só custou um real e, muito
provavelmente, não mudou significativamente a vida daquela mulher... Porém, ele
estava lá, dizendo-me que eu ainda não cheguei onde quero; contudo, que posso
caminhar entre reflexões, autocríticas e empatia até chegar.
Meu feminismo é uma bala de
R$1,00. Melhor uma "feminista capenga", que nenhuma - pensei; mas não é o bastante;
é preciso seguir lutando e, às vezes, a luta é contra nossos próprios egoísmos.