terça-feira, 17 de maio de 2016

Meu feminismo é uma bala de R$1,00

Foi numa quinta-feira acinzentada de maio, por volta das 8 horas, que eu a vi entrar no ônibus. Era alta e imponente, contudo, parecia tímida diante daquele ônibus cheio de olhos. Eu, com meus fones no ouvido, não ouvi sua voz. Caso não carregasse aquela caixa, não saberia, ou se quer imaginaria, que ela estava vendendo alguma coisa.

Demorei alguns segundos para perceber que ela realmente anunciava algo; mesmo tímida, mesmo sem tentar persuadir ninguém... Ela estava vendendo doces, mesmo que de uma maneira tão diferente dos homens que vejo, costumeiramente, entrar nos ônibus para vender produtos diversos. Era como se aquele espaço a esmagasse e, hoje, pensando em seu rosto, não consigo ver nenhuma esperança.

Demorei mais que alguns segundos para decidir o que fazer. Aquela mulher, com sua voz baixa e seu cabelo ainda molhado, confrontava meu feminismo com sua bala. Será que devo comprar? Mas eu nem como bala. Mas eu poderia usar esse dinheiro, mesmo que seja pouco, em algo útil.  Será que devo comprar? Se eu comprar, talvez, ela fique um pacote de bala a menos de ver uma filha ou qualquer pessoa que ame. Se eu comprar, talvez ela tenha um tempo a mais para descansar, fazer algo que queira e goste. Ou talvez ela vá até algum lugar e compre mais bala... Ou talvez...

Fazia-me perguntas, confrontava-me. Confrontava a minha luta. Será que ela teve a oportunidade de um dia ir à universidade? Ela já trabalhou com outras coisas? Essa foi sua última opção? Por que é tão difícil decidir comprar ou não uma bala? Por que cada uma dessas mulheres, sentadas no ônibus, não compra uma bala? Será que esquecemos nossa empatia? Será que elas enxergam a mulher com os doces? Será que mais alguém está perdido neste ônibus, procurando pelas mesmas respostas?

 E ela lá, ancorada em seu silêncio que tudo via, talvez esperando que alguém descesse, para que fosse junto, sem coragem de espantar a paz com o barulho do sinal. E lá ela, ancorada em sua espera, talvez acreditando que alguém ainda fosse comprar algo. 

Fiz, finalmente, um gesto, chamando-a, e ela se aproximou.

- Bom dia, quanto é a bala?
-R$1,00.
-Quero uma, por favor.
- Qual o sabor?
- Hamm...
- Tem maracujá, morango...
- Morango.
- Aqui, obrigada.
- Eu que agradeço.

Ela vendeu mais uma ou duas balas. E, tão silenciosamente como entrou, deu o sinal e saiu do ônibus. Nada do típico "valeu motorista" ou “abre aí bom”. Apenas o silêncio.

A bala ficou intacta por um bom tempo... Ela tinha o gosto amargo do meu feminismo que ainda não chegou, de forma prática, a tantas mulheres. Aquela mulher no ônibus, vendendo balas, poderia já ter frequentado a universidade ou nela estar; ela poderia ser feminista e defender causas tão parecidas com as minhas. Aquele lugar de trabalho não determina sua inteligência ou coragem; ao contrário, joga na minha cara o quão "fácil" é ser considerada intelectual dentro da academia, ou revolucionária dentro de casa, mesmo que isso também seja importante. É preciso mais. E foi a presença dela, naquele ônibus, que me fez perguntar o que eu, como mulher e feminista, ainda não fiz em apoio a essa e tantas outras mulheres, conhecidas ou desconhecidas. O que me atrapalha de ser degrau, ombro, pernas e coração de outras?

O meu feminismo, naquela quinta, veio embrulhado numa bala de morango. Ele só custou um real e, muito provavelmente, não mudou significativamente a vida daquela mulher... Porém, ele estava lá, dizendo-me que eu ainda não cheguei onde quero; contudo, que posso caminhar entre reflexões, autocríticas e empatia até chegar.


Meu feminismo é uma bala de R$1,00. Melhor uma  "feminista capenga", que nenhuma - pensei; mas não é o bastante; é preciso seguir lutando e, às vezes, a luta é contra nossos próprios egoísmos.     

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