quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Perdidos em sombras

Hoje, encerramos mais um ano. Contudo, quem é que encerra o tempo? 

Quando crianças, o tempo não faz total sentido para nós. Ontem, hoje e amanhã misturam-se e dançam juntos, como se fossem um. Os dias passam, contudo, todos são; até que nos ensinam a dividi-los e hierarquizá-los em úteis e inúteis, produtivos ou não. Até que nos mostram como é possível mergulhar em nossas próprias sombras¹, dividindo o indivisível. 

O tempo capitalista pode ser retalhado: horas de estudos, tempo de trabalho, períodos de formação. O tempo de vida não, porque este não é feito de segundos ou séculos, mas de memórias que nos permitem ser o "todo de uma vida só"¹, sem que a gente precise morrer um pouco a cada contagem, a cada virada.

"A vida é indivisível", já dizia o poeta², "Mesmo/ A que se julga mais dispersa". E ela "pertence a um eterno diálogo/A mais inconsequente conversa". 

Nessa mania de dividir, perdemos os bocadinhos de prosa que fazem da vida poesia. Perdemos o beijo bem dado, a mão entrelaçada, a partilha; esquecemos de como é abrir a boca para gargalhar e do que é contar... Felicidades e histórias, dinheiro não. Nós esquecemos e, assim, vamos perdendo  para os dias, meses e anos, aquilo que nos torna humanos; nós esquecemos e devagarinho, acompanhando o ponteiro do relógio, mergulhamos e afundamos nas sombras de nós mesmos. 

Mas veja bem, meu caro, "Todos os poemas são um mesmo poema/Todos os porres são o mesmo porre". Por isso, se eu fosse você, "eu nem olhava o relógio, seguia sempre em frente.../ e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas"². Se eu fosse você, começaria a medir a vida "pelo encantamento que a coisa produza"³ e não pelo tempo no qual pode comprimi-la.

Mas veja bem... Veja bem, eu não sou você. Portanto, contento-me em desexplicar: busque-se na vida e emerja de suas próprias sombras.

Feliz vida.    


¹ Referências do livro "A varanda do frangipani" de Mia Couto
² Referências ao poeta Mario Quintana
³ Referências ao poeta Manoel de Barros

sábado, 19 de dezembro de 2015

A mulher e o cinema

Apesar do dia excessivamente quente e do risco que corria de ser chamada de “poser”, por não ter assistido aos filmes anteriores ou lido os livros sobre o universo, fui ver Star Wars no cinema. Confesso que fui mais como companhia de um irmão fã que pela curiosidade de uma leiga, sorte a minha ter aceito o convite: foram cerca de duas horas e meia de filme e diversas reflexões.

Eu sabia o básico sobre a série: personagens principais, seus respectivos lados na força, algumas de suas características e importância no filme. Sabia, também, que o filme teria referências aos anteriores, mas que não seria essencialmente uma continuação. Sabia que novos personagens apareceriam. O básico para não cutucar o fã ao lado. Só não sabia que uma personagem seria marcante ao ponto de me fazer sentar e escrever sobre ela. Ou, na verdade, sobre como ela se parece com tantas outras mulheres.

Rey era órfã e vivia no seu planeta como uma catadora de lixo. Como diz minha mãe, vendia o almoço para pagar a janta. Teve que aprender a se virar sozinha: conseguir a própria comida, defender-se, curar-se e cuidar-se. Aí, talvez, pensando em como os filmes normalmente representam as mulheres, você pergunte: isso tudo sem homem? Não, teve homem sim.  Mas ela não precisava que ele segurasse sua mão ou que a salvasse.

Por que, exatamente, eu gostei da Rey? Ela poderia ser eu ou você: uma mulher comum. Ora, quantas vezes mesmo você teve um homem para segurar sua mão enquanto andava rápido, com medo de um cara que a assediava?  Ou quantas vezes um homem - alto, moreno e charmoso - apareceu no meio da noite, enquanto você andava apressada, para segurar  sua mão e levá-la em segurança até sua casa? Provavelmente nunca. Pois é. A gente encara a vida mais sem os homens que com eles, principalmente, quando encaramos o machismo de muitos; nesses casos, temos apenas umas as outras. E olhe lá.
Repito, Rey foge totalmente do estereótipo cinematográfico feminino, da mocinha em apuros (padrão que, aliás, a Disney ajudou a disseminar e fez esse trabalho muito bem feito). No caso de Rey, ela é só uma garota vivendo a própria vida com coragem e arriscando-a quando necessário.

E, afinal, não é isso que a gente faz o tempo todo?

Rey e sua força fizeram-me pensar: refletir sobre a força que não apenas tiraram de nós, mulheres, nos cinemas, mas na vida. Obrigaram-nos a lutar (porque em um mundo machista, não resta outra coisa  a não ser a luta) e ainda nos chamam de fracas e, por vezes, incapazes. Diminuem nossas batalhas e vitórias. Acham que podem nos submeter ao lugar que quiserem, esquecendo-se que o nosso lugar e papel – tímido ou exuberante, cobrindo-se ou expondo-se, sendo isso ou aquilo – são todos os que quisermos e escolhermos.

Preste atenção, a nossa questão não é dizer que os homens não prestam, de forma generalizante, e que devem ser exterminados.  Porém, dizer que nos viramos sozinhas o tempo todo, então, vocês podem se libertar dessas poses de valentões: não precisamos que nos salvem. Queremos que nos respeitem e entendam que nossas escolhas independem de suas vontades: não precisamos que falem por nós; então, parem de sufocar nossas palavras.

A minha questão, neste texto, é respirar aliviada porque um padrão, ao menos em um filme de grande circulação, foi quebrado. É ficar contente de não passar duas horas sentada, tendo que engolir um tipo de protagonista que não tem nada a ver com que a maior parte das mulheres é (ou todas, se pensarmos que muitas de nós apenas assumem um papel que lhes foi ensinado ou imposto, sem reais escolhas).

Minha questão é comemorar.

CO-ME-MO-RAR mesmo: ufa, um passo a mais. Está valendo a caminhada.

Triste mesmo foi só ouvir comentários (inclusive de mulheres) de como a personagem era “feminazi”.

Respirei fundo: um paradigma por vez.

Vamos lá.