quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Carta ao futuro

Querida Mariane,

Eu não sei como anda sua vida aí no futuro. Não sei para onde os descaminhos da vida levaram suas escolhas, mas eu sei o porquê de você escolher a docência. Por isso, aqui do passado, lugar de onde você tomou sua decisão, faço o favor de lembrá-la... Porque, se um dia estiver tão difícil que acredite não poder suportar, você irá lembrar.

Você estava um pouco perdida, lembra? Ainda criança você disse que seria médica e as pessoas que te amavam começaram a sonhar com você. Claro, ser médica, mesmo que não significasse riqueza, significava status... E imagine só! A estudante de escola pública, que os pais trabalharam desde a juventude para alcançar seus objetivos, tornando-se médica. Seria um sonho. No entanto, com o tempo, você percebeu que não era mais o seu sonho.

Eu fico imaginando se, aí no futuro, você mantém essa característica de nunca querer magoar as pessoas; por esse seu jeito, levou a cabo a idéia de cursar medicina até o último ano do ensino médio, quando finalmente a vida te deu uma daquelas rasteiras: ou você decide ou sempre terá alguém decidindo por você. E você decidiu.

Não sei se ainda lembra com carinho do dia em que teve certeza de que não era o que queria. Aqui do passado, você lembra. Lembra das lágrimas e do frio na barriga; lembra do medo e também da coragem que tomou seu coração depois. Você sempre soube o que queria de verdade, mas inventava umas desculpas pra se convencer, mas tem uma hora que a gente entrega os pontos e se entrega ao que nos garante aquele brilho nos olhos.

Brilho nos olhos: nunca se esqueça de como é ver o mundo através dele.

Você olhava para as crianças com afeto e se perguntava o quanto poderia afetá-las e ser afetada por elas. E descobriu. Lembra-se de quando foi acompanhar a aula do seu irmão e de como aquelas crianças te olhavam com curiosidade? Lembra-se da sensação? Eles estavam curiosos e agitados, então, você disse, calmamente, que se eles continuassem gritando, você não poderia entender o que diziam e, por sua vez, eles não saberiam quem você era. Então, eles se acalmaram e começaram as perguntas: Qual o seu nome? O que você é do tio Lucas? Você também é professora? Vai dar aula para gente? Então, vocês tiveram aquele encontro, sabe? Quando os olhos riem e você sabe que está no lugar certo. Houve outros além daquele.

Foi lecionando que você, pela primeira vez, percebeu que todas as crianças são nossas. Nossa responsabilidade. Nosso dever. Nossa luta.

Lembra-se de quando iniciou seu primeiro estágio, de como você recebia os abraços e os desenhos? Lembra-se das histórias? Lembra-se de conhecer as mais duras realidades e de querer ajudar a mudá-las? Espero que não tenha esquecido do desespero ao ver a infância criminalizada e  de como não desistiu, mesmo diante das mais absurdas e desesperadoras acusações de “defensora de bandido”.

Você acreditava na democracia, na liberdade, na participação, nos direitos resguardados, os quais favoreceriam o cumprimento dos deveres. Você acreditava na solidariedade, no acesso igualitário, na diversidade. Você acreditava num mundo diferente e, sobretudo, melhor. Melhor para quem nunca teve saneamento básico ou acesso às escolas de qualidade; pra quem corre o risco de morrer por ser negro e pobre; para seus prováveis filhos. E para os filhos de todos.

Você sonhava com um mundo em que os olhos de intolerância fossem transformados em olhos de esperança e partilha.

Eu não sei o quanto conseguiu mudar as situações que a incomodavam. Não sei o quanto mudou em interação com o outro e o mundo. Porém, eu sei que você acreditava que iria conseguir.

Às vezes,
“O tempo nos faz esquecer
O que nos trouxe até aqui
Mas eu me lembro muito bem
Como se fosse amanh㔹

E farei o possível, daqui do passado, para que você nunca se esqueça.

Com ternura,


Você



¹ Música "Armas Químicas e Poemas" - Engenheiros do Hawaii

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Hoje é dia das crianças

Hoje é dia das crianças. De todas as crianças. 

A segunda frase deste texto poderia ser um exagero, caso nos lembrássemos de que hoje é dia delas, de que todos os outros dias também deveriam ser, independente de onde moram e de como vivem. Mas nós não nos lembramos. Não nos lembramos porque não é fácil: não é fácil lembrar-nos do quanto falhamos com elas todos os dias; de como ignoramos suas súplicas, suas dores e seus medos.

Ter medo do escuro é coisa de criança: não tenha medo do escuro. Porém, aqui estamos nós, fadando nossas crianças à escuridão da vida, dos castigos, dos conteúdos; à escuridão das ruas, do furto.

Hoje é dia das crianças. De todas as crianças. Caso você não se lembre, eu faço questão de repetir:

Hoje é dia das crianças. De todas as crianças. E nós temos responsabilidades sobre elas, sobre todas elas. Sim, nós: eu e você, como parte da sociedade, temos responsabilidades. Então, antes de gritar por redução da maioridade penal e até desejar a morte de algumas crianças; antes de sujeitá-las e espancá-las; antes de destinar a elas a escuridão e o silenciamento do mundo, lembre-se que é seu dever, como "pessoa de bem" que defende a família e cumpre as leis:

"assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão." (artigo 227 da Constituição)


Anotou o recado? Há muito trabalho pela frente.

Todas as crianças são nossas. Eu assumo a minha responsabilidade.

E você?