sábado, 9 de abril de 2016

O homem que não tirava o chapéu

Era uma vez um homem que vivia na Cidade do Caos. A cidade havia assim ficado conhecida após muitos eventos; em alguns, as pessoas até pareciam felizes e pintavam seus rostos em comemoração a jogos e prêmios, porém, havia outras coisas. As outras coisas eram sempre mal ditas, ditas entre os dentes e sussurradas; as promessas eram sempre de vento. Vento falso, daquele que nem o cabelo faz balançar.

O homem da cidade do Caos sabia que o problema não havia começado com os eventos, mas com a ganância. Ganância que ele havia visto nos olhos de homens de azul, que vieram logo depois dos homens de uniforme, com sangue nas mãos. Contudo, como todo mundo odeia a ganância dita na cara, os homens de azul a escondiam em suas maletas e paletós. Escondiam ganância, também, em suas barbas sempre bem feitas, que era para não serem confundidos com os homens da cor de fogo. Eles fingiam esconder sua sede pelo poder, e as pessoas, da cidade que ainda era uma maravilha, fingiam acreditar; afinal, já estavam acostumadas.  Todos os dias, diante do espelho, os habitantes da cidade escondiam suas mazelas pelos bolsos ou debaixo do chapéu, pra ninguém notar. E mesmo assim, todo mundo notava.

O homem da cidade do Caos não tirava o chapéu, item comumente usado em sua cidade. Sua escolha, porém, não tinha a ver com o medo das mazelas expostas; ele sabia que tinha uma coleção delas, no entanto, tinha a humildade de mostrá-las e, pouco a pouco, ia deixando algumas pelo caminho, enquanto se constituía gente. O homem não tirava seu chapéu por um motivo singular: tirar o chapéu desumanizava. Vejam bem, – ele dizia aos bêbedos que pareciam os únicos a escutá-lo – quem lhes ensinou a tirar o chapéu? Os bêbedos, que às vezes pareciam sábios, respondiam: Os azuis em comício.

Sim, os homens azuis haviam ensinado à população a tirar seus chapéus, a situação para retirada era bem específica: se nos perceber devorando a humanidade de alguém, tire o chapéu. Ao ato, podiam-se usar algumas palavras ou expressões como “parabéns”, “empenhado”, “sua parte” ou, simplesmente, anunciar: para você eu tiro o chapéu.

Como a cidade era um caos, havia chapéus sendo tirados para todos os lados.

Chamaram-no de cor de burro fugido e você ficou calado, sem mimimi? Chapéu tirado. Dividiram seu arroz em suaves porções de 4 grãos? Chapéu tirado, pelo menos você está fazendo sua parte. Continuou a girar a manivela e a apertar o parafuso da máquina, mesmo chorando silêncios? Mesmo sem pote de ouro depois do arco-íris? Chapéu tirado, como você é empenhado!!!

A cada chapéu tirado, um pouco de humanidade perdida. A cada chapéu tirado, os homens azuis mais 4 anos permaneciam a encher a mala; em alguns casos, conta-se, havia tanto a esconder que até a cueca servia de esconderijo.

O homem de chapéu, porém, recusava-se: dalí o acessório não sairia, a humanidade de ninguém ajudaria a tirar um pouco mais. Usou o chapéu nos dias mais caóticos da cidade do Caos e, pouco a pouco, convenceu seu povo de que os chapéus não deveriam ser retirados para companheiro algum. Os chapéus ficariam na cabeça, a dignidade em suas vidas, a humanidade em seus modos de sentir o outro...

E os azuis? E suas ordens?

Eles que se preparassem.

– Lá vem o povo do chapéu!

Gritou alguém da janela.

O chapéu não mais saiu. Nem os sapatos dos pés.

Dedos, pés, alma, corpo... Todos caminham juntos para a revolução de suas próprias humanidades.      

   

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Poesia numa hora dessa?

Na última roda¹, se não me engano, uma professora leu uma crônica, da Martha Medeiros, cujo título usei nesta reflexão: “Poesia numa hora dessa?”. Eu, que nunca entendi bem essa coisa de dividir a vida entre dias úteis e inúteis, em hora de poesia e horas de poxa vida, peguei-me com tal questão: poesia numa hora dessa?

Indaguei-me, aflita, depois de recusas e desprezos; após tantos negarem, velada ou explicitamente, entrar na roda. Questionei-me diante de tanta ausência, diante desse silêncio que grita em favor do descaso: poesia numa hora dessa? Poesia como luta e afirmação de direitos? Será mesmo um caminho possível e plausível? Será?

Pois bem, não digo que minha resposta aos silêncios e aos gritos, às presenças e às ausências, seja a melhor e que irá convencer você de minhas crenças num Rio de Janeiro mais justo, num Brasil de equidade, que começa com a qualidade da educação pública. Apenas tomo este espaço, que é nosso, do povo, para dizer-lhes a boniteza de meus silêncios, para lhes despertar diante das lutas de meus lamentos. A minha resposta é simples, tão simples que não é minha. Tão de outros² que é singular: poesia numa hora dessa sim, companheiro.

Poesia numa hora dessa para não sermos os hipócritas de Quintana: os democratas escravocratas. Poesia para sermos o menino de Barros, que encontra apreço no encantamento e não precisa, necessariamente, fazer de razão. Poesia para sermos Conceição e enxergarmos nossos privilégios pelos olhos d'água de uma mãe e desconstruirmos as mazelas preconceituosas de nossa existência. Poesia porque aqui bem perto, na Mangueira, há uma pichação que diz: somos seres humanos. E que desgoverno é esse, que pessoas, em especial os pobres, precisam anunciar sua humanidade para que a vejam? Poesia para a menina que prefere ser a pior princesa do mundo a ser a mulher que impõem a ela. Poesia para sermos Jeremias e mandarmos os monstros que criamos embora; poesia para sermos Rocha, a Ruth, e não prendermos o rabo em falcatruas, nem elegermos quem o tenha preso em contas na Suíça. Poesia pra dizer que não queremos golpe, mas que queremos solução; que não queremos assistencialismo barato, mas queremos o HUPE tão bem equipado quanto seu vizinho, o Maraca; com seus profissionais tão valorizados quanto os protagonistas de um clássico entre Vasco e Flamengo. Poesia para lermos nossas angústias, para percebermos nossos erros, para celebrarmos nossos acertos, para nos unirmos na luta por um futuro outro. Poesia para sermos, estarmos, prosseguirmos e resistirmos. Poesia pra quê? Pra sermos Galeano e, vendo o horizonte se afastar, continuar caminhando.

E que a poesia se transforme em manifestos, em atos de solidariedade, em empatia por outros, sempre tão diferentes de nós; que a poesia nos transporte de nossa própria existência, transporte medíocres à revolução; covardes à esperança; moralistas à humildade. Que a poesia nos carregue, nos evolva, nos molde, faça-nos gente, faça-nos revolucionários; pois, parodiando uma frase que, infelizmente, desconheço o autor, afirmo: a revolução será em versos ou não será.


¹Roda de leituras e contação de histórias que ocorre na UERJ toda segunda, 10h30, durante a GREVE.
²No decorrer do texto são usadas referências de poesias e livros lidos na roda.