sexta-feira, 20 de março de 2015

Medo da liberdade

Você já passou da adolescência, já é um adulto e tem grandes pretensões. Você já  trilhou tempestuosos caminhos  e já contemplou a paz de um dia sereno: aprendeu muitas coisas.  Contudo, há algo que, se perguntado, vai responder que sempre soube fazer: sonhar.

Você sempre soube com o que deveria sonhar: uma casa, carro, família, uma profissão. Venderam-lhe esses sonhos antes mesmo de nascer: já havia planos de um filho arquiteto e de uma bela menina, a qual poderia cuidar de uma grande família e ser bem sucedida. Menino ou menina será, sobretudo, uma pessoa  “do bem” – o que não significa ser solidária ou respeitar o direito de qualquer ser humano, apenas não furtar, talvez sonegar alguns impostos ou não devolver o troco que veio errado; ou não assassinar, já que o sangue de inocentes nunca está em suas mãos frágeis; tudo é sempre uma fatalidade. E, por ser uma pessoa "do bem", será livre.

Liberdade: o sonho que mais lhe venderam. Nunca, no entanto, ousaram lhe dizer o que era.  Até disseram, aliás, que ser livre é sonhar esses sonhos tão comuns, típicos de propaganda de margarina. Ser livre é “não dever nada a ninguém” (porque nada, nunca, é sua culpa).

Você foi e é, assim, tudo que você pode ser, tendo exatamente os sonhos que pode ter¹.

Você até se diria “livre” naquela conversa de bar, entre amigos. Entretanto, quando ousam perguntar o que é liberdade, aquele nó na garganta, maldito nó na garganta: você tem medo dela.

É fácil sonhar com uma profissão, embora tenhamos um sistema de ingresso injusto à universidade e as oportunidades estejam proporcionalmente ligadas a condição social,  a fórmula é certa: estudar, fazer aquela prova milhões de vezes, não desistir, ter sorte. Assim, você deixa de ir a algumas festas (ou não), dorme um pouco menos e ao fim de alguns anos tem um diploma.

É fácil sonhar em ter uma família, embora haja brigas e incompatibilidades, você não vai encontrar resistência para que se case, tenha filhos, dê algumas palmadas² quando necessário e fique casado para sempre - mesmo que traia sua esposa ou esposo esporadicamente, pois isso é totalmente aceitável.

Você vai juntar aquele dinheirinho todo mês, vai ir menos ao shopping,  nem sempre terá a roupa da moda, porém, vai comprar uma casa e um carro. Ufa. Você é livre.

É mesmo?

Por que você acha que lhe venderam estes sonhos? Porque você acha que nunca, na sua infância, no lugar de “o que vai ser quando crescer?”, perguntaram “quem pretende ser quando crescer?”. Por que nunca se preocuparam em te vender sonhos de um mundo sem desigualdades, onde há distribuição de comida para todos (porque há comida para todos, não se engane)? Por que nunca venderam o sonho  de viajar para lugares pobres e oferecer ajuda?  Por que estender a mão sempre foi um gesto de pedir e não de compadecer-se? Por que não o sonho de passar o dia cantando e desejar que garis e motoristas tenham um bom dia? Por que não o sonho de querer bem? 

Por que não lhe doaram o sonho de mudar o mundo?

Porque o mundo precisa ser exatamente como é: o mundo desigual, em que os sonhos individuais são a única coisa que temos, é necessário para a fortuna de poucos. O mundo  que tortura e mata quem sonha diferente é preciso: os sonhos egoístas não podem se perder e dar lugar aos sonhos coletivos de justiça – não  de vingança. Você precisa ser governado apenas pelos sonhos que fabricaram, porque se perdê-los...

Há o caminho.

E o caminho não lhe basta. Você precisa de comando: de um destino. Foi o que sempre ensinaram a você.

As nuvens não são mais de algodão¹, meu caro. Mas podem ser.

Liberdade é pouco. Procure por aquilo que ainda não deram nome³.



¹ Quase todo texto aqui publicado começa ao som de uma linda canção, neste texto não foi diferente. Faço referência, duas vezes (por isso a repetição do ¹), à música "Somos quem podemos ser" dos Engenheiros do Hawaii. 


² A palmada ainda é um recurso muito utilizado para "educar". Que tal repensar essa prática? As páginas do Facebook "Crescer sem Violência" e "Cientista que Virou Mãe"podem ajudar.

³ Em referência a Clarice Lispector: "Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome'.